Com o tempo, as lesões foram se agravando e a família desconfiou que talvez não fosse passageiro. O diagnóstico veio até rápido e foi feito em Campinas mesmo, por uma dermatologista. Era dermatite atópica mesmo, uma doença genética e crônica, com a qual não só Márcio, mas principalmente sua família, naquele primeiro momento, teriam que aprender a lidar.
A condição de Márcio gerou certa agitação entre os parentes. “Muitas pessoas queriam opinar, dar ideias de tratamento, até rituais que eles acreditavam que curaria a minha dermatite”, conta Márcio. Isso fez com que seus pais se isolassem, de certa forma, em seu núcleo familiar mais próximo. Uma forma de proteger o filho e garantir o tratamento adequado, sem interferências.
A partir do diagnóstico de Márcio, sua mãe percebeu que também apresentava, ela mesma, sintomas típicos da DA, mas nunca foi formalmente diagnosticada com a doença. O risco de desenvolver dermatite atópica é de duas a três vezes maior entre crianças que têm um dos pais atópico. E cinco vezes maior se ambos forem atópicos.4 Oito anos depois, nasceu a irmã Laura, também portadora de DA. “Como eu já tinha sido diagnosticado, foi mais fácil perceber os sintomas que ela tinha”.
É com leveza e autoconhecimento que Márcio se propõe a levar a vida. Um aprendizado que ele diz ter vindo da própria vivência com a dermatite atópica. “Depois de um tempo eu percebi que minhas crises tinham a ver com o psicológico. Isso me fez trabalhar a respiração, que me ajuda a evitar crises de estresse que possam desencadear algo”, afirma. E foi no basquete que esse processo de tomada de consciência começou.
O esporte.
Já adolescente, com 11 anos, Márcio começou a jogar basquete em um clube da cidade. A princípio, os pais não gostaram muito da ideia, principalmente por conta de limitações respiratórias acarretadas pela atopia (asma, bronquite…). Mesmo assim, Márcio persistiu.
O nervosismo e a ansiedade que antecederam seu primeiro jogo, fizeram com que Márcio tivesse uma crise de dermatite antes da partida começar, o impossibilitando de jogar. “Ali, eu entendi que precisava aprender a controlar meus sentimentos e minha própria ansiedade para que eu pudesse dar o melhor de mim e participar das partidas”.
Até hoje, Márcio ainda pratica o esporte. Às vezes, o suor acaba acarretando novas crises, principalmente nas dobras de joelhos e cotovelos. O rapaz tinha um ritual após cada treino: ia rapidamente para o banho, e depois passava hidratante no corpo. Ali, ele percebeu que era o único que tinha aquele hábito, enquanto todos os outros meninos apenas se enxugavam e vestiam a roupa. “Já virou rotina. Não consigo sair do banho e não passar hidratante”.
Já o nervosismo não foi mais um obstáculo depois que Márcio aprendeu a ouvir seu corpo e relaxar a mente. “Essa minha consciência me ajudou muito durante a pandemia. Enquanto eu ouvia muitas pessoas dizerem que estavam enlouquecendo e com medo, eu sabia que tinha que respirar e ouvir a mim mesmo”, conta, “assim permaneço calmo”.
Agindo dessa forma, Márcio diz conseguir evitar condições que afetam boa parte das pessoas com DA: ansiedade e depressão.
O preconceito.
Márcio não sabe dizer bem quando começou, mas sua memória mais antiga de preconceito e bullying por causa da DA remete à primeira série. “Tinha gente que tinha medo, outros não queriam ficar perto de mim… eu tento pensar que não era proposital, que eram só crianças que não sabiam o que estavam fazendo, mas é claro que doía”, relembra o rapaz, se mostrando forte e confiante.
A família, no caso de Márcio, teve um papel fundamental na sua formação como ser humano, na sua consciência sobre sua condição de saúde. “Como eu sou negro, já esperávamos preconceito por causa da minha pele e a questão da dermatite só potencializou. Meus pais sempre me deram suporte e me fortaleceram nesse sentido”.
Para Márcio, o preconceito funcionou a vida toda como um filtro de relações. “Eu entendia que se alguém não queria ficar perto de mim por causa da dermatite, que fosse assim. Então eu ignorava e partia pra outra. Pra que ficar perto de alguém que não quer estar perto de mim?”.
Dermacamp: um novo capítulo.
“A minha vida pode ser dividida em duas fases: antes e depois do Dermacamp”, é o que afirma Márcio enquanto relembra todos os momentos vividos em mais de uma década.
O Dermacamp é uma organização não-governamental sem fins lucrativos, fundada em 2001, com o objetivo de promover ações que contribuam para a inclusão social, melhoria na qualidade de vida e superação de desafios vivenciados por crianças e adolescentes com doenças raras de pele.
Márcio começou a frequentar o Dermacamp aos 9 anos, mas até hoje é muito vívida a lembrança da potência transformadora que aqueles poucos dias de acampamento tiveram na sua vida e têm na vida das crianças e adolescentes que participam dele. “Você vê crianças chegando com moletons, calças, tudo para esconder seus corpos, sua pele”, conta Márcio, “depois de dois, três dias, essas mesmas crianças estão de regata, sem camisa. Elas se enxergam pertencentes, percebem que existem outras crianças como elas”.
Mais tarde, tornou-se voluntário, ajudando a cuidar das crianças, a fazer brincadeiras e compartilhando a sua própria história. “Lá, as pessoas te abraçam sem perguntar o que tem na sua pele. Eles não se importam”.
Há um ano o técnico de operações se afastou um pouco dos encontros – muito por causa da correria do dia-a-dia e das demandas da vida adulta. Mas as memórias continuam vivas. “Foi o lugar que conheci uma das minhas namoradas, fiz amizades e construí memórias para a vida toda. O Dermacamp mudou completamente minha vida”.
Ele ri ao relembrar uma passagem do primeiro passeio, quando o ônibus quebrou no meio da estrada. “Foi uma confusão, quando chegamos a São Paulo, tinha até polícia nos aguardando”.